Punks, os guardiões de uma era - Marco Milani |
Resenha COLETIVO CANCROCÍTRICO – O ANTI-LARANJAS
Muito se fala que os professores e historiadores do futuro terão problemas para explicar a nossa época. Mas a que nos precede, que compreende as décadas de 1980 e 1990, não é mais fácil de compreender. Fim de uma ditadura somada a um caso de inflação tão agudo e persistente que é modelo para estudos de economistas do mundo todo. Estávamos reconstruindo o país, sem exageros. Era preciso organizar cidades que haviam crescido de maneira caótica, escrever uma constituição e garantir direitos mínimos a todos.
Voltamos a votar, mas os políticos eram os mesmos de antes. Dos novos, muitos se mostraram tão ruins quanto. Visto que tiramos o primeiro presidente eleito. Havia ainda o fantasma de uma guerra nuclear e o despertar para o problema ambiental. Tudo ficou densamente registrado na imprensa da época e nos documentos administrativos. Evidências de uma época sem as quais os historiadores não podem escrever uma vírgula, sob pena de se igualarem a qualquer palpiteiro da Internet ou do bar da esquina.
Mas quem poderia fazer frente à versão “oficial” do que se passou? Ao verniz dos conglomerados de comunicação e ao capricho dos burocratas? Quem poderia mostrar aos historiadores e a qualquer cidadão curioso aquilo que foi considerado sem importância ou pueril?
A esse papel, os memorialistas são de grande presteza. Aqueles que, geralmente às próprias custas, se esforçam em preservar os fragmentos do passado, mesmo sem saber bem se serão compreendidos. Tantas vezes ridicularizados, quase sempre quixotescos, os memorialistas salvaguardam nosso patrimônio, mesmo sem a chancela acadêmica. Qual pequena cidade não tem o seu guardião do passado, que mantém caixas de fotos antigas, relatos, nomes e datas em papéis amarelados?
E os punks, quem diria, vestem tão bem essa carapuça – ou essa jaqueta. Não há nada na cultura underground brasileira como o punk. Muito provavelmente, no resto do mundo não é diferente. São inúmeros os documentários produzidos pelos próprios punks, aqueles mesmos do século passado, mas com a facilidade dos meios digitais, ajudando a compor esse imenso mosaico do que foi viver o Brasil daquela época longe dos holofotes.
Mais numerosos ainda são os que têm em suas casas caixas e mais caixas de fanzines, fotos, fitas e discos que testemunham a trajetória de uma banda de uma cena de qualquer cidade do país. São apenas dois os arquivos disponibilizados em instituições de pesquisa, disponíveis a qualquer cidadão. Entretanto, chamam a atenção pela quantidade e pela riqueza de documentos: fanzines, cartas, cartazes e encartes.
A dissertação de mestrado deste que os escreve só foi possível graças a um desses arquivos, que só existe graças a um dos maiores memorialistas do punk nacional, Antonio Carlos Oliveira, também um personagem do documentário “Coletivo Cancro Cítrico, o Anti Laranjas”.
Documentário este, produzido por outro dos gigantes dessa memória, o incansável Luis Eduardo, vulgo Cientista, cujo sobrenome nunca descobri. Através de detalhadas entrevistas, ele nos leva pelas ruas de Londrina, até o tempo em que o punk chegou por lá, como se atendendo ao chamado de Londres, do Clash. É o terceiro documentário desse cineasta do it yourself e, de alguma maneira, parece tentar redimir o trabalho sem fim de Cientista por uma causa – causa esta, que ele mesmo já chamou por diferentes nomes.
O Coletivo Cancrocítrico foi uma organização surgida no seio do punk londrinense, que estendeu rizomas por todo o Brasil graças ao fanzine de mesmo nome. Como sempre acontece no meio underground, teve altos e baixos, contando sempre com a persistência de Luis Eduardo.
Quando entrei em contato com ele por conta da minha pesquisa de mestrado, foi extremamente prestativo, como é comum aos fanzineiros destes e de outros tempos. Mas vi, ao longo dos anos, inúmeras vezes, o bom e velho Cientista nadando contra a corrente para continuar levando a sua mensagem, lutando por sua causa.
Não cabe, aqui, estender-nos em descrições a respeito de quem são os entrevistados e do que ou como falam sobre o Coletivo e o punk londrinense. Tudo isso pode, e deve, ser apreciado pelo leitor no próprio filme. A preciosidade do documentário já está na sua improvável existência. Diga-se o mesmo do Coletivo Cancrocítrico e os seus fanzines, graças aos quais muitos jovens expandiram seus horizontes em finais do século XX. São, hoje, testemunhos de um punk não pasteurizado pelos editoriais de moda, ensanguentado pelas páginas policiais ou ridicularizado pelos formadores de opinião.
Fragmentos de uma cultura contestadora riquíssima, ainda mais ampla que o punk, existente no período. Capaz de viver sob a superfície e com escasso e difícil dinheiro – num infame, mas útil trocadilho com os nomes das bandas do Cientista. Que essas memórias suscitem ainda mais sonhos e reflexões a respeito desses sonhadores – e não menos demiurgos – já que o diferencia a nossa década para aquelas é que, em algum momento, desaprendemos a sonhar.
MARCO ANTONIO MILANI - Mestre em História pela Unesp e produtor cultural
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